as crónicas da pulga

31.1.05

mil e duas

e ela tentava, mais uma vez. arranjava 1002 desculpas para não desencadear o pior dos momentos. mais uma vez se esquecia de toda a angústia. ansiedade. alienação. mais uma vez se esquecia de si. e mais uma vez... sorria.
e ele sorria. mais uma vez prometia. sim, sim, sim. mais uma vez se fazia acreditar. querer. desejar. mais uma vez se esquecia. e mais uma vez... dormia.
e ela acordava. cantava. dançava. mais uma vez sentia... um aperto, um contínuo torcer do coração. e caía, mais uma vez, redonda no chão. agarrava-se ao peito e parecia que tudo ía saltar mais uma vez. e tudo realmente saltava. toda ela se diluia num pranto, mais uma vez. e mais uma vez... monologava.
e ele comia... as suas palavras. engolia-as e defecava-as mais uma vez, num acto aparente de terna degustação.
e ela degustava-se. mais uma vez tentava acreditar. e acreditava.
e ele não. ele nada. 1002 vezes nada.
e ela tudo. não. e não mais tudo: mais nada!!

infusão

o que dizes não altera o que já existe. o que já existe. o que já existe.

mamã, não. não! não caias, mamã! NUNCA SE DIZ NÃO! avó, cucu! cucu! olha para as minhas mãos. sorri, avó, sorri! marta! tó zé! manuel! de castigo para a sala! não se chama maluca à mamã! IMEDIATAMENTE!! avô, não morras, avô... avô...

era uma vez um palhaço
sentado no palco, com ar de cansaço

uma menina veio, deu-lhe um bombom dourado
o palhaço riu-se e disse obrigado

10.1.05

distância íntima

modo afastado (15 a 40cm)

"aqui, cabeças, coxas, bacias não se encontram facilmente em contacto, mas as mãos podem juntar-se. a cabeça é vista como maior do que o natural e os traços são deformados. com efeito, a 15 ou 20cm, a íris do outro aumenta sensivelmente. distinguem-se nela os capilares da esclerótica e os poros parecem mais largos.
a visão distinta (15graus) inclui a parte superior ou a parte inferior do rosto, que aumenta. o nariz torna-se mais comprimido e pode parecer deformado, tal como os lábios, os dentes e a língua. a visão periférica (30 a 80graus) engloba os contornos da cabeça e dos ombros e, com muita frequência, as mãos.
à distância de 15 a 45cm, a voz é utilizada, mas conservando-se num registo mais abafado, que pode ser o do murmúrio.
«este modo íntimo de locução evita dar ao destinatário informações que não provenham do próprio corpo do locutor. trata-se simplesmente de lembrar ao receptor a existência de algum sentimento situado no interior do emissor». o calor e o cheiro do outro são perfeitamente detectáveis. o subir ou descer da temperatura do corpo do outro começa a poder ser percebido por alguns sujeitos."

-aula de antropologia do espaço

as distâncias no ser humano
a dimensão oculta
Edward Hall

4.1.05

1,2,3,4,...

deixei de respirar.

rasgaste-me a pele do umbigo. rompeste-me as vísceras e subiste os teus dedos até ao estômago. agarraste-me nos restos de comida misturada há muito com saliva e com todo o ácido que consegui produzir, e revolveste-os. subiste-me pela laringe e, aí, desviaste-te para a traqueia e, com apenas os dois dedos com que decerto já pegaste num cigarro, assim, levemente, apertaste-a, deste-lhe um jeitinho...
não morri, mas deixei de respirar.

uma rua vazia esperava por nós todas as tardes. depois das aulas. caminhávamos. tu, eu e a tua bicicleta. era tudo novidade para mim. e não gostava daquelas ruas. mas não dizia nada. era tudo novidade para mim. olhámos para todos os lados, tentando não encontrar olhos curiosos. antecipamos, assim, o nosso primeiro beijo. naquele canto. era tudo novidade para mim. e foi sempre assim: eu, tu e a tua bicicleta.
depois, e de repente, ela morreu. morreu tudo o que havia em mim também. morreste-me.
não morri, mas deixei de respirar.

cheguei
ansiosa por tudo o que me ias dar.
uma flor, um beijo, uma cor, um calor. um amor. para sempre. um amor.
não estavas.
quase morri, deixei de respirar.

fomos à praia, que dia tão belo, o sol, o pôr do sol, as cores do céu e as cores do céu reflectidas na água. o cheiro da areia em nossos pés, os riscos que nela fizemos.
mergulhámos juntos, sentimos a frescura que a água nos dava. o crepúsculo. acariciaste-me os cabelos debaixo de água, tomáste-os todos na tua mão e, suavemente, fizeste-me descer contigo. beijámo-nos leve e profundamente. depois subiste, retomaste o fôlego e voltaste para junto de mim. beijáste-me outra vez. voltaste a subir, suavemente, sempre suavemente. suavemente continuavas a acariciar os meus cabelos debaixo de água, esticavas gentilmente os braços para que nem um pouco de ar me chegasse aos pulmões. e eu, lá em baixo, começara a espernear, como uma rã em delicado desespero. até à última bolha de ar que me saiu. e ali me deixaste.
não morri, mas deixei de respirar.

saltitei, vi-te, sorri, olhei-te, ri, escrevi, corri.
não morri
e já não sei como se respira...

como se vai para singapura

"Desabituei-me dos milagres. Sabe-se como é: quase todas as manhãs acordo angustiado, esforço-me por imaginar que este dia é virgem e primeiro, carregado de poderes enigmáticos, destinado às revelações. Literatura. Merda. Trata-se de mais um dia em que vou chatear, aturar os meus semelhantes, a filha-da-putice teológico-emocional de um Deus que, ainda por cima, não existe. Posso especular sobre a revolução, evidentemente. Que revolução? A revolução, claro. Pois é: a minha revolução não dá um passo."

Os Passos em Volta
Herberto Helder